Mais de seis décadas depois do lendário “Dois Cavalos” ter inaugurado a linha de montagem da fábrica de Mangualde da Citroën, em 1962, esta unidade de produção foi totalmente requalificada e modernizada pela Stellantis para poder produzir veículos elétricos. O ë-Berlingo é um deles.
Neste artigo:
ë-Berlingo: a eletrificação funcionou?
Um 2CV6 cinzento escuro produzido em Mangualde foi o meu primeiro carro, nos anos 80, pelo que me sinto algo nostálgico a escrever esta análise ao novo Citroën ë-Berlingo. Além disso, os meus dois últimos carros de família foram Berlingos: um de segunda geração (1.6 HDi) e, atualmente, um “irmão” da Toyota, o Proace City Verso, com motor 1.2 turbo a gasolina.
Tenho uma família grande e adoro este tipo de carros, nomeadamente nos seus aspetos práticos, com portas de correr para acesso aos lugares de trás e pelo facto de serem dos poucos veículos deste tamanho que oferecem efetivamente três lugares traseiros do mesmo tamanho e confortáveis para outros tantos passageiros, mesmo em longas viagens.
Mas será que a eletrificação do Berlingo criou problemas na habitabilidade ou retirou de alguma forma a praticabilidade da versão a combustão? É precisamente sob esse ponto de vista que decidi abordar este teste.
O design
Num mundo de SUVs (Sport Utility Vehicle), o Berlingo continua a ser uma proposta original, sendo membro de uma categoria de veículos que, tendo sido popular, é cada vez mais rara – a dos MPVs (Multi-Purpose Vehicle) ou seja, um veículo polivalente. Os britânicos também gostam de chamar a este tipo de carros “people movers”, o que faz todo o sentido especialmente no caso deste modelo, dos poucos no mercado onde cinco pessoas se sentem, todas, confortáveis.
A unidade testada, Max XTR[1], é um Berlingo de terceira geração (lançada em 2018) que recebeu em Outubro de 2024 um facelift, com uma frente idêntica à que encontramos, por exemplo, no novo Citroën C3 (e que foi ensaiada inicialmente no concept Oli).
O “mesmo carro” pode ser visto nas gamas da Peugeot, Opel e Fiat, todas do grupo Stellantis, e também na da Toyota, fruto de um acordo entre o grupo francês e a empresa japonesa. Todos eles receberam recentemente facelifts, com grelhas e capots alinhados de acordo com a linguagem de design de cada marca. E em todas elas existem igualmente versões “normais” e “longas”, sendo que estas últimas podem ser configuradas com 7 lugares.
No entanto, há uma diferença fundamental entre estes veículos “geração 3.5” do grupo Stellantis: deixou de ser possível adquirir versões de passageiros que não sejam 100% elétricas. Só no caso da Toyota (que recebe também uma versão BEV, mas apenas na variante longa) é possível ainda comprar um destes veículos com motor a combustão, a gasolina (1.2) ou diesel (1.5); e, no caso da Fiat, não existe sequer versão de passageiros (a combustão ou EV) do Dobló.
Dito isto, o design exterior do ë-Berlingo não traz – além das já referidas alterações na parte da frente – novidades dignas de registo. Gosta-se ou não; mas os aspetos práticos sobrepõem-se à estética. Continuamos com as duas grandes portas laterais e um portão traseiro de grandes dimensões que, nesta versão, permite abrirmos só o vidro, de forma a aceder facilmente a objetos no seu (enorme) porta-bagagens.
Interior – cockpit
Dentro, o carro mantém-se igual à versão pré-facelift, quer em termos estéticos, quer práticos, quer no tipo de materiais usados (muitos plásticos duros). As pequenas alterações são sobretudo resultado do novo painel de instrumentos, agora totalmente digital, bem como os comandos que substituem a manete da caixa de velocidades convencional.
Estes comandos (físicos) são, de resto, partilhados por outros carros do grupo Stellantis. Mas aqui no ë-Berlingo temos uma disposição de ecrãs mais tradicional, com um atrás do volante, que nos oferece as principais informações (velocidade, navegação, utilização da bateria, modos de condução…), e outro totalmente separado, no meio do tablier, mas inclinado para o condutor, com as funções multimédia e outros controlos do veículo, nomeadamente as assistências à condução.
Este ecrã, que suporta tecnologias Android Auto e Apple Car Play, permite algum grau de personalização e, nomeadamente, a colocação de atalhos diretos que nos permitem (des)ligar as assistências à condução mais intrusivas.
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A versão testada era bastante generosa em termos de funcionalidades, desde o ar condicionado automático com duas zonas até à tomada schuko de 230v junto aos pés do passageiro. Já o carregamento sem fios pareceu-nos que não seria compatível com smartphones de maiores dimensões – algo que o potencial interessado deverá verificar antes de adquirir o “pack” Tecno em que esta função vem incluída.
De qualquer forma, o carregamento de dispositivos móveis não será problema, dada a abundância de portas USB-C e tomadas de isqueiro de 12v espalhadas pelo carro, quer à frente, quer atrás.
Interior – arrumação e lugares traseiros
A versão do ë-Berlingo testada, a XTR, veio particularmente bem equipada, sendo de destacar a “modutop” (uma opção de 600 euros noutras versões) que oferece arrumação adicional com acesso não apenas a partir de dentro, mas, também, de fora, abrindo apenas o óculo traseiro.
O destaque justifica-se sobretudo por uma razão: é que apesar de todos os inúmeros locais de arrumação (e são muitos) neste carro, não existe qualquer outra forma (além do modutop) de arrumar o cabo de carregamento. A alternativa seria deixá-lo simplesmente solto no porta-bagagens, até porque não existe qualquer arrumação sob o capot (frunk), apesar de nos parecer que existiria espaço para tal.
Os generosos bancos traseiros que conhecemos desta geração do ë-Berlingo mantêm-se aqui, não tendo sido afetados de forma alguma pela presença das baterias em troca do sistema de propulsão de combustão.
Na segunda geração do Berlingo, os bancos traseiros eram totalmente amovíveis mas, na atual, são fixos. Contudo, a Citroën (e as restantes marcas que têm variantes deste modelo nas suas gamas) encontrou uma alternativa tão boa ou melhor: ao deitarmos os bancos traseiros, as costas ficam paralelas ao piso da bagageira sem qualquer descontinuidade nem elevação, uma vez que, simultaneamente, o assento é rebaixado, desta forma permitindo que as costas encaixem no espaço libertado.
Desempenho dinâmico
A versão de passageiros do ë-Berlingo continua fiel ao que sempre foi: um prático “people carrier”, pelo que não podemos esperar, nem exigir, que seja um veículo “entusiasmante” de conduzir.
Contudo, o que posso dizer, após ter conduzido durante anos um Berlingo de segunda geração com motor 1.6 HDi e, mas recentemente, a versão Toyota do mesmo carro com motor 1.2 turbo a gasolina, é que esta versão elétrica é bem divertida de conduzir!
O carro é pesado, mas não tanto como seria de imaginar (1811 kg), uma vez que a bateria usada também não é muito grande (50 kWh utilizáveis). No entanto, os 100 kW (136 CV) do seu motor elétrico oferecem um desempenho muito interessante para este carro, algo que pudemos confirmar mesmo com 5 pessoas a bordo.
Obviamente, não há milagres, mas a com a instalação da bateria, baixou-se o centro de gravidade. Esse facto, conjugado com a resposta imediata do motor elétrico acabam por tornar este ë-Berlingo claramente mais agradável de conduzir do que a das suas versões a combustão.
Além dos habituais modos de condução – Normal, Eco e Power – a versão XTR oferece mais três modos (não testados) que apelam ao caráter aventureiro deste carro: Areia, Neve e Lama.
Tecnologia elétrica
A versão pré-facelift já tinha variante elétrica. Contudo, com a chegada deste novo ë-Berlingo, o carro ganhou maior eficiência, muito embora mantenha a bateria de 50 kWh: a versão elétrica pré-facelift oferecia autonomia no ciclo combinado WLTP de 280 km, mas na nova versão este valor subiu para uns mais razoáveis 345 km.
As opções de recarregamento incluem AC (7 kW standard e 11 kW como opção) e DC a 100 kW, o que não sendo muito, nos parece suficiente, dadas as dimensões da bateria.
Mas o que mais nos impressionou foi a forma como a Stellantis realizou a conversão elétrica, sem tocar nos aspetos práticos do veículo, uma vez que esta plataforma não foi criada de raiz para ser um EV. Pode pensar-se que isso seria sempre um dado adquirido, mas tal está, infelizmente, longe da realidade. Já vimos casos mais extremos, noutras marcas, em que a eletrificação basicamente destruiu a usabilidade do carro enquanto veículo capaz de transportar mais do que duas pessoas… quanto mais cinco!
Mas voltando ao ë-Berlingo, gostávamos de ver, num futuro próximo, uma bateria maior, com correspondente maior autonomia, pelo menos na versão longa do carro, a qual é capaz de transportar sete passageiros. Neste momento, a mesma bateria é usada em ambas variantes, sendo que a autonomia é penalizada na versão longa, a qual é mais pesada – mesmo sem sete pessoas a bordo.
Conclusão
O ë-Berlingo é um carro para quem valoriza os aspetos práticos acima de quaisquer outros. Não ganha concursos de beleza nem “drag races”. Mas oferece o que poucos no mercado conseguem: cinco verdadeiros lugares e espaço de bagagem para levar a família – toda! – à aventura. E, nesta versão elétrica, até consegue comungar com a natureza.
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O Citroën ë-Berlingo está disponível a partir de €36.300 (versão Plus). Preço da versão Max: 38.800€. Preço da versão ensaiada: €42.751.
[1] Este carro foi ensaiado no final de 2024 e, infelizmente, a versão Max XTR não está atualmente a ser comercializada em Portugal, apenas a Max.